terça-feira, 26 de agosto de 2008

Futebol brasileiro e sociedade: a interpretação culturalista de Gilberto Freyre


Obra de Portinari


Futebol brasileiro e sociedade: a interpretação culturalista de Gilberto Freyre

Antonio Jorge Soares

Introdução

O objetivo deste estudo é analisar os escritos de Gilberto Freyre sobre o futebol e o seu estilo de pensar a identidade brasileira. Seu modo de análise incidiu na formação de uma tradição que faz parte do modo de pensar as singularidades da cultura e da identidade brasileira e, por extensão, do modo brasileiro de jogar futebol. A necessidade de resgatar Gilberto Freyre dá-se em função do fato de que as leituras, descrições e interpretações sobre o futebol brasileiro reproduzem, conscientes ou inconscientemente, os argumentos e imagens freyreanos sobre o tema.

Como já demonstrei em outros estudos, os cientistas sociais quando se remetem ao passado para analisar a história do futebol no Brasil se apóiam no livro de Mário Rodrigues Filho, O negro no futebol brasileiro (publicado em 1947 e, republicado e ampliado, em 1964), que foi fortemente influenciado pelo pensamento de Freyre e pelo contexto de construção nacional nas décadas de 1930, 40, 50 do Séc. XX (Soares, 1999). É curioso que os cientistas sociais não considerem a influência do contexto histórico e de Freyre nas páginas do texto de Mário Filho. Em tese, posso afirmar que, pela ampla utilização do livro de Mário Filho, o estilo de Freyre e seu modo de pensar o Brasil, a cultura e, especificamente, o futebol se constituiu numa tradição presente no campo das ciências sociais, no jornalismo e em nosso cotidiano. Vale aduzir que muitos argumentos utilizados pelos cientistas sociais são quase reproduções literais dos dados, palavras e interpretações de Mário Filho. Portanto, tais reproduções representam, em certo sentido, a continuidade da tradição freyreana na interpretação da cultura. Parece existir um esquecimento tácito das influências de Freyre sobre a obra de Mário Filho que se tornou, por carência de fontes e/ou pelo vigor do texto, um cânone dos escritos sobre o futebol em nosso país. Por exemplo, Leite Lopes (1994) diz que quem faz uma leitura apressada do 4º capítulo “Ascensão social do negro”, do O Negro no futebol brasileiro, poderia ter a impressão de um final feliz em relação ao racismo no futebol, entretanto, uma leitura mais atenta demonstraria que Mário Filho ali já anunciava a persistência do racismo –observe-se que este argumento é do próprio Mário Filho e está escrito em “Nota à segunda edição” (Rodrigues Filho, 1964, s/d). A persistência, segundo Leite Lopes, seria comprovada no acréscimo de dois novos capítulos que Mário Filho fez para edição de 1964. Para Leite Lopes, Mário Filho teria descrito nesses dois novos capítulos, a) o drama do recrudescimento do racismo ao perdermos a Copa de 50, e b) a posterior inversão dos estereótipos raciais com as vitórias nas Copas de 58 e 62. Seguindo essa mesma linha de interpretação Gordon Jr. diz que:

“A constatação dessa lenta mudança, no entanto, não pode ser confundida com a idéia de plena “democracia racial” ou com ilusão de que por intermédio do futebol pusemos fim ao racismo. O livro de Mário Filho nos apresenta fatos que constituem um processo de democratização das relações raciais dentro da sociedade brasileira, no qual o futebol exerceu um papel de grande importância. Mas um processo que, não custa repetir, está longe de seu término” (1995: 74). Leite Lopes e Gordon Jr., indicam, pelos argumentos apresentados acima, que O negro no futebol brasileiro não pode ser classificado como um exemplar da ideologia da democracia racial. Entretanto, esquecer ou deixar de apontar a influência de Freyre e da ideologia de integração nacional na obra em questão parece se constituir numa operação de “assepsia ideológica”, no sentido de resignificá-la a partir de uma linguagem politicamente correta de denúncia do racismo. Tal interpretação sobre o texto de Mário Filho é fruto da falta de trabalho histórico, da ausência de novos levantamentos e de um certo ceticismo; atitude indispensável ao ofício de qualquer pesquisador. Leite Lopes e Gordon Jr. imputam a Mário Filho uma atitude crítica frente à ideologia da democracia racial. Transformar Mário Filho em crítico da ‘democracia racial’só pode ocorrer em função dos desejos ideológicos dos autores citados acima ou da falta de rigor na análise da fonte que tomam como base. Ao comparar as edições do NFB os verifiquei que Mário Filho, na edição de 1964, retira frases e parágrafos que decretavam o fim do racismo no futebol. Vale observar os textos suprimidos que aparecem grifados na citação abaixo:

“A torcida do Flamengo andou afastada dos campos uns tempos, só voltou quando o team, sem Domingos, estava para levantar o tri-campeonato. Sem Domingos e sem Leônidas. Leônidas no São Paulo, Domingos no Corinthians, um pensando num restaurante quando deixasse de jogar football, o outro mandando construir casas em Bangu. Nenhum jogador tinha subido tão alto quanto esses dois negros do foot-ball brasileiro. Já se sabia, porém até onde podia chegar um artista da pelota, para usar um termo que ainda sai nos jornais. Branco, mulato ou preto. Porque em foot-ball não havia o mais leve vislumbre de racismo. Todos os clubes com seus mulatos e os seus pretos. (81) Um preto marca um goal, lá vêm os brancos abraçálo, beijá-lo. O goal é de um branco, os mulatos, os pretos, abraçam, beijam o branco (Rodrigues Filho, 1947: 293).

A notas de rodapé (números 81 e 82) retiradas por Mário Filho para a nova edição também indicam sua franca adesão à imagem que o Brasil havia resolvido, já na década de 1940, o problema racial: (81)– Dos quatro mil cento e quarenta jogadores que passaram pelo Departamento de Assistência Social da Federação Metropolitana de Football, durante a temporada de 45, 60% eram brancos, 21% mulatos, 2,5% caboclos e 16,5% pretos. (relatório de 1945 do Departamento de Assistência Social da Federação Metropolitana de Foot-ball). Todos os sessenta e três clubes filiados com brancos, mulatos e pretos em todos os seus teans, desde o primeiro até o de juvenis. (82)– E quem está na geral, na arquibancada, pertence a mesma multidão. A paixão do povo tinha que ser como o povo, de todas as cores, de todas as condições sociais. O preto igual ao branco, o pobre igual ao rico. O rico paga mais. Compra uma cadeira numerada, não precisa amanhecer no estádio, vai mais tarde, fica na sombra, não apanha sol na cabeça, mas não pode torcer mais do que o pobre, nem ser mais feliz na vitória, nem mais desgraçado na derrota (Rodrigues Filho, 1947: 293). Essas provas e argumentos parecem suficientes para demonstrar que o texto de Mário Filho, em 1947, é um típico exemplar da ideologia da democracia racial. O não reconhecimento da relação intelectual entre Freyre e Mário Filho, ocorre, provavelmente, por Freyre ainda ser ligado a uma espécie de ingênua ideologia de democracia racial –apesar do ressurgimento do debate de sua obra no interior

das ciências sociais brasileiras nos últimos anos. Tal postura em pode ocorrer em função dos autores lidarem com a imagem “popular do pensamento freyreano”. O “freyrismo popular” pode ser definido, por críticos ou adeptos, como a idéia de que no Brasil não existe racismo; idéia ingênua e simplista que não podemos atribuir a obra de Gilberto Freyre. Seu engajamento como intelectual e cidadão na luta contra o racismo e na militância para aprovação da Lei Afonso Arinos (1951) indica que Freyre tinha convicção da existência do racismo no Brasil, embora pudesse pensar na singularidade do racismo brasileiro e nas formas pacíficas de gradual superação. Freyre também pensava que a democratização era gradual e que a ideologia da morenidade auxiliava esse processo. Entretanto, há que se separar, ou pelo menos analisar com mais cuidado, as interfaces entre aquilo que Freyre escreve para os jornais (sua militância) de sua obra sistemática sobre o processo de desintegração do sistema

patriarcal, e sobre a formação da cultura brasileira. A interpretação de Leite e Lopes e de Gordon Jr. sobre O negro no futebol brasileiro apresenta bias em função de terem acreditado nas palavras de Mário Filho em 1964:

“Há de parecer estranho que sem ter que modificar nada que escrevi, conservando intactas as quatro partes da primeira edição do O negro no futebol brasileiro, a segunda surja aumentada e tenha a pretensão de definitiva” (Rodrigues Filho, 1964: s/p, Nota à segunda edição). Não colocar o problema das influências e da relação entre Freyre e Mário Filho, possivelmente reduz os problemas daqueles que utilizam cegamente os dados do O negro no futebol brasileiro (Soares, 1999). Se os interpretes de Mário Filho não tiveram o distanciamento necessário, o mesmo não se pode dizer de Freyre em relação ao seu amigo. Freyre ao prefaciar a primeira edição do O negro no futebol brasileiro manteve certo distanciamento. Freyre renderia todos os louvores a Mário Filho, pois, disse que ele como escritor é “ágil e plástico (...), é também pesquisador inteligente e pachorrento para quem a história do futebol em nosso país parece já não ter mistério nenhum” ( F r eyre, 1947:s/p).

Leia mais em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/alabarces/PII-Soares.pdf

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