quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O lugar de onde falo*


*Antonio Sérgio Alfredo Guimarães -Departamento de Sociologia da USP -asguima@usp.br

Uma regra básica do método sociológico é que o investigador precisa saber e controlar o lugar social de onde fala, observa e escreve. Antigamente, tudo parecia ainda muito simples: imaginávamos uma relação entre sujeito e objeto, entre o Nós e os Outros, e quanto menos envolvimento e maior estranheza, melhor. Quem não se lembra, a esse respeito, da famosa regra durkeimiana de tratar os fatos sociais como coisas?

Pois bem, de que lugar alguém como eu, sendo branco, pode escrever sobre o racismo no Brasil senão do lugar do branco? Vou voltar um pouco à minha infância. Então, o que era ser branco? Obviamente, não falo aqui de um grupo de descendência, posto que sabia desde a infância que tinha ascendentes negros. Não, não se tratava de um grupo de descendência, como também não se tratava inteiramente da aparência física, posto que pessoas aparentemente mestiças, próximas a mim por parentesco, eram também brancas. Tratava-se, antes de tudo, de uma polaridade social entre “brancos” e “pretos”, polaridade essa apenas cortada por aqueles que se preferiam “pardos”, posição cromática que, grosso modo, era escolhida por aqueles que, não se achando socialmente superiores, queriam também se distinguir dos socialmente inferiores, posição enfim daqueles que se consideravam “remediados”. O fato mais interessante nessa classificação era que para ser branco a ascendência contava pouco; mas, para ser preto, ao contrário, a ascendência sempre contava.

Um preto era um preto, ainda que “preto de alma branca”. Apenas quando a ascendência africana se amainava na mestiçagem podia alguém “passar” por branco. Pois bem, para complicar as coisas, o lugar de branco, de onde falo, não podia ser também, a não ser muito artificialmente, um lugar de onde os pretos fossem “os outros”. Ao contrário, a promiscuidade social e racial das casas de família baianas de classe média, com suas criadas pretas e mestiças (meninas incorporadas à família extensa para o trabalho doméstico em troca de alimentos, roupas e educação), com os filhos de empregada, etc., recriava o ambiente de servidão e de convivência familiar da Casa Grande freyriana. Para que os pretos fossem os “outros” era preciso permanecer imerso em etiquetas e convenções sociais as mais artificiais, estúpidas e provincianas, coisas que a minha geração soube imediatamente romper, antes de romper com regras sociais mais sólidas e universalmente reconhecidas. Pois bem, esse lugar de branco, não sendo um lugar de descendência, nem sendo um lugar de onde os pretos fossem “outros”, só podia ser o lugar da democracia racial. Pois é, venho desse lugar. De um lugar onde o “racismo” só podia ser produto da mesquinhez ou dos desvios de personalidade individuais. Onde o “preto” era objeto de pena e não de ódio, tratado, como se tratam os deficientes físicos; um inferno, mas um inferno de onde podiam salvar-se através da mestiçagem, pulando para o purgatório dos “pardos”, ao tempo em que estes podiam aspirar, através da educação e do dinheiro, o paraíso dos brancos. Um inferno com válvula de escape, disse Degler. Creio, de resto, que a democracia racial tem sido o lugar de onde têm falado quase todos os sociólogos brancos brasileiros, quando falam dos pretos e do racismo.

De fato, poucos sociólogos tinham falado de lugar diferente, mesmo os sociólogos pretos. As exceções começaram a aparecer apenas a partir das gerações frentenegrinas que se auto-definiram “negras” (recusando o epíteto de preto). Mas a Frente Negra Brasileira era ainda carente de grandes intelectuais ou de cientistas sociais, os quais vão aparecer apenas nos anos 50, com Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento, que criaram a “negritude” brasileira. Essa tradição, graças a Deus, não cessa hoje de crescer e já não inclui apenas intelectuais e sociólogos, mas toda a juventude que se faz cotidianamente cidadã do mundo através do consumo de massa. A democracia racial de que lhes falo se tornou, portanto, e tem crescentemente se tornado, insuportável e ofensiva para os negros, que inventam para si e para nós todos uma nova estética e uma nova forma de igualdade. Acho que Joel Rufino tem toda a razão quando disse que é a luta contra a democracia racial que vem alimentando até aqui a militância anti-racista no Brasil.

Este livro, Tirando a Máscara, ainda é um livro que tem a democracia racial como referência: quem nele escreve, escreve do lugar do negro no Brasil, do lugar de quem recusa ser o “preto” da democracia racial, mas de quem está ainda construindo um outro lugar para si, o lugar do negro, que Bastide e Fernandes costumavam chamar de “novo negro”. Que lugar é esse? Certamente não há hoje nem haverá amanhã um lugar único para o “negro”. Mesmo na “democracia racial”, os “pretos” eram candidatos a “pardos” ou a “pretos de alma branca”, mas é forçoso reconhecer que existiram sempre rebeldes “negros”, quilombolas de territórios ou de espaços culturais. Conservadores e progressistas; subalternos e rebeldes; covardes e corajosos, etc., etc.; quando se fala de gente, se fala de pluralidade e de diversidade. É também provável que, na sociedade que estamos hoje a construir, além de alguns desses tipos antigos subsistirem, outros novos apareçam. O negro do Tirando a Máscara é o negro militante, aquele que se faz porta-voz de camadas mais amplas da massa negra e que não luta apenas por si. Esse negro tem hoje nas desigualdades raciais o seu principal inimigo; superou a fase em que a luta anti-racista ficava restrita ao combate às discriminações e ao preconceito; pleiteia por ações afirmativas e não apenas punitivas para curar o racismo.

Mas, tão importante quanto aquela, há também um outro tipo de militância negra – a militância cultural, que tem por finalidade criar um mundo em que os negros não sejam mais os patinhos feios do Brasil, os rejeitados e penalizados. Esses negros aspiram uma sociedade cultural heterogênea e diversificada, que tenha pelo menos uma face em que o negro se reconheça. É possível que o bom pequeno-burguês negro tenha deixado de ser “um preto de alma branca” e passado a ser apenas um negro conciliado com sua negritude. Que ao invés de procurar nas páginas do Clarim da Alvorada a certeza de que a “cor é apenas um acidente”, encontre na Raça Brasil a certeza de que ser negro é participar de um amplo e refinado mundo transnacional de consumo e de cultura. Mas o que ainda une todos os negros é a certeza de que existem barreiras de cor no Brasil, barreiras que diminuem as oportunidades de vida do profissional e do empresário negro, assim como diminuem as chances dos estudantes e dos adolescentes negros; barreiras que, no limite, selam o destino de milhões de negros nascidos e criados na pobreza.

Voltemos agora, ao lugar do branco na democracia racial, de onde lhes falo. “Que branco?”,devemos perguntar. Para alguns brancos o desmonte da “democracia racial” pode não significar mais que uma nova ordem, mais democrática e competitiva, na qual a sua superioridade permanece de início inalterada, dado os capitais (cultural, financeiro, social, etc.) acumulados no passado. Para muitos brancos “morenos”, como eu, entretanto, a bi-polaridade que se vulgariza com o fim da “democracia racial” é inaceitável: significa perder todo o capital social familiarmente acumulado, escolher começar tudo de novo por baixo, ao menos socialmente, pois significa renegar a condição de “branco” social. Significa perder, principalmente, uma referência nacional no mundo branco. Muitos de nós, “morenos”, fizemos da democracia racial a nossa pátria, signo da nossa soberania, livres do racismo de que seríamos vítimas em terras anglo-saxônicas ou mesmo européias. Só a nossa nacionalidade podia nos dar a condição de brancos que almejávamos – herdeiros de uma civilização conquistadora, cujas raízes estendiam-se pela Grécia, por Roma e por Israel. Nacionalidade construída à maneira dos franceses, renegando a ascendência étnica para se concentrar no culto de uma história comum e na memória de uma formação mítica a partir das três raças, com predominância branca. Talvez por isso, como os franceses, nos sentimos culturalmente ameaçados pelos Estados Unidos e por suas categorias raciais. O lugar de que falo, portanto, é um lugar que procura silenciar o negro, absorvê-lo, embranquecê-lo, jamais afirmá-lo. A grande questão de quem fala desse lugar é saber se é possível conciliar a afirmação do negro enquanto afro-descendente com a afirmação do Brasil como um país de mestiços, um país moreno. Dito de outro modo, à maneira de Guerreiro Ramos, para se afirmar como cidadão do mundo branco, os brasileiros negam patologicamente o negro que trazem em si, construindo um lugar todo seu, branco a seu modo, mas certamente não negro. É o lugar de quem entende intuitivamente a grande dificuldade do movimento negro brasileiro, que quer convencer os mestiços a se contarem como “negros”; mas é também o lugar de quem entende que as barreiras raciais jamais serão vencidas pelos pretos que não assumam conscientemente a bi-polaridade subreptícia que estrutura a vida social e cultural brasileira.

Pois bem, falo desse lugar, rompendo o silêncio e tirando a máscara, mas sabendo que só um compromisso mais amplo, de classe, pode evitar que as desigualdades sociais brasileiras se reacomodem numa futura pós-emancipação cultural e estética dos negros, ainda que esta promova à cidadania milhões de negros, como aliás já aconteceu nos Estados Unidos. Do lugar de onde falo parece clara a intuição de Florestan Fernandes: na hora atual apenas os negros e os índios podem romper a grande inércia social brasileira, que cristaliza as desigualdades e torna impossíveis as solidariedades de classe e de cidadãos.

Veja mais sobre o autor:
-Formação e crise da hegemonia burguesa na Bahia (dissertação de mestrado, 1982) (texto completo)
-LasaForum: Racial Inequalities and Public Policies
-Café com leite (azeite e água?) (Vídeo)

Fonte: http://www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/0050.pdf


Nenhum comentário: