segunda-feira, 25 de agosto de 2008

LEMBRANÇA DE ROGER BASTIDE




LEMBRANÇA DE ROGER BASTIDE
NA BAHIA E EM PARIS

JORGE AMADO

Cada vez, ao chegar em Paris, uma das primeiras coisas a fazer era telefonar para Roger Bastide, o Bastidinho como carinhosamente nós, seus amigos antigos, dos tempos de sua permanência no Brasil, o chamávamos,para diferenciá-lo do Bastidão, Arbusse-Bastide outro admirável francês dos que vieram antes da segunda guerra mundial para os inícios de nossa verdadeira vida universitária e aqui prolongaram sua estada, devido ao conflito armado. Roger Bastide vivia em Paris a saudade do Brasil; não creio que tivesse nosso país amigo mais dedicado, mais fiel, mais apaixonado. Mais de uma vez participei com o professor ilustre de programas de rádio e televisão tendo como tema a vida brasileira, nossa experiência de fusão de raças, nossos problemas de nação, nossa mestiçagem e a cultura original dela nascida. Com conhecimento profundo e com profunda paixão ele explicava, contava, trazia o Brasil, seu povo, sua vida para a intimidade dos franceses. Trabalhador infatigável, uma boa parte de seu tempo e de suas energias era dedicada ao Barsil.

Eis que escrevo estas linhas de saudade na cidade de Paris, onde a cada viagem o reencontro com Bastide significava não s6 a alegria de rever o amigo mas a possibilidade de recordar os anos passados e a cor, o sabor, o ritmo, a graça, a presença da pátria. De recordar os amigos, muitos dos quais já desaparecidos. Lembro de nosso encontro após a morte de Sérgio Milliet. Bastide não se conformava com a notícia. Com a memória de Sérgio andamos pelos bulevares, bebemos um trago no bistrô. Em todos os encontros, tantos nos últimos anos, a figura de Mãe Senhora, em toda sua estatura impressionante, vinha sentar-se ao nosso lado, na lembrança viva de um tempo vivido intensamente por Roger Bastide e por mim. Em Paris eu o revejo na Bahia, na viagem inicial quando Bastide tocou pela primeira vez a magia e os mistérios da cidade, quando pela primeira vez intercambiou conhecimentos com os orixás, deles recebendo a unção dos começos do homem e dando-lhes em troca o fervor de siia ciência, pois, de então até o último momento, a Bahia, seus deuses e sua gente foram para o sábio francês amigos íntimos, apaixonada descoberta, parte definitiva de sua personalidade.

Vejo-o ao lado de Senhora, ainda moça, herdeira no combate, na implacável guerra dos santos, do impbio estabelecido com grandeza por Mãe Aninha, aquela que sabia ser ao mesmo tempo a bondade e a força, realmente a Mãe de uma coletividade que ainda hoje prossegue existindo nos altos de São Gonçalo, a casa, o axê do 6pô Afonjá, o invencível Xangô. Entre Senhora e Bastide estabeleceram-se laços de fervorosa amisade. Os orixás significaram de logo a estima merecida pelo professor vindo de longe, do outro lado do mundo, de súbito feito exilado pela guerra, reencontrando a fraternidade humana num terreiro de candomblé da Bahia. Terreiros de candomblé perseguidos pela polícia de então com inominável violência, obrigados a uma vida quase clandestina, mas sempre abertos e fraternos nas relações com sábios, escritores e artistas. Senhora, prosseguindo a tradição de Aninha, fez do Opô Afonjá a casa de Bastide, de Artur Ramos, de Edison Carneiro - tendo este último ali se homiziado quando caçado pela polícia política do Estado Novo. Na casa de Oxum, Mãe Aninha o escondeu, colocando-o sob os cuidados de Senhora. Não se deve esquecer ter sido o 6pô Afonjá o terreiro do sábio Martiniano Eliseu do Bomfim. Dele e de Aninha, Mãe senhor: recebeu a grande tradição. Ao lembrá-la rindo seu riso pleno de sabedoria popular, ao lado de Reger Bastide, dou-me conta exata da significaç50

da palavra cultura.

Poucas pessoas compreenderam e sentiram tão completamente a Bahia quanto Roger Bastide. Naqueles idos da segunda guerra, quando ele veio para compreender, eu o acompanhei um pouco, por toda parte e daí nasceu uma amizade para toda a vida. Recordo seu entusiasmo pela culinária baiana: eu tinha uma casa de veraneio em Periperi e uma famosa cozinheira, filha de Yemanjá, dona dos temperos e do dengue. Jamais a esqueceu Bastide, como jamais havia de esquecer Maria de São Pedro,

no velho Mercado Modelo, mestra da grande arte. Pelas ruas andamos vagabundos, pastores da noite baiana em dias de "blecaute" quando na semiescuridão da lua e das estrelas a magia da cidade se tornava maior, mais densa, mais sensível. Nas esquinas de Exu, os despachos se multiplicavam, sobre eles se curvava o sábio Bastide descendo o Pelourinho, subindo as Portas do Carmo, o ouvido atento ao surdo rumor dos atabaques trazido pela brisa das secretas e perseguidas casas de santo. A cidade da Bahia foi de imediato sua cidade e até o último dia.

Roger Bastide tinha sincero orgulho de sua iniciação nos ritos do candomblé. Em Paris, onde já não o reencontro para falarmos do Brasil, da Bahia, dos amigos, eu o vejo no terreiro de santo, a curiosidade cientílica, o coração vibrante, o sábio e o amigo, o baiano Roger Bastide.

Paris, julho 1974

SOUVENZR OF BASTIDE ZN BAHIA AND ZN PARIS

Zn his article written for this number of Afio-Asia, the novelist Iorge Amado, Roger Bastide's close friend since his first stay in Brazil,rccalls the deceased sociologist's devotion to the Brazilian culture. The news about Bastide's death was made known to Lhe novelist when the latter was once again in Paris. "Zn Paris I see him again in Bahia, during his first voyage, when Bastide felt for the first time the magic and the mysteries of the city", writes Jorge Amado. According with the Brazilian writer's opinion, only a few persons anderstood and felt Bahia as well as Roger Bastide, a city to which he dedicated not only a scientific curiosity but also "the vibrant heart".

Fonte: http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n12_p61.pdf

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